Crônica de um adultério

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1937

Pernambuco, Feira Nova. Os Rocha padeciam, há três gerações, de rebentos criminosos, de vida curta; e sempre, em anos de véspera à morte, ficavam aleijados: perdiam pernas, os dentes apodreciam da noite para o dia, ficavam cegos, tinham braços amputados – e moral, diga-se de passagem, tão capenga e enviesada quanto a compleição do corpo. Será descrita aqui apenas uma passagem da história dessa personagem, Azucrim. À época, ele já não tinha quase nenhum dente, só sobrou um, em verdade, os olhos eram amendoados, fixos, amarelentos e miúdos. A pele era vermelha, quente e engelhada do sol.

A casa de Azucrim Rocha Machado ficava no cimo de uma montanha, metida em um vale, na capital P***. O telhado era de barro e conservava ainda o talhe das coxas dos negros dos tempos da escravidão – possivelmente, havia certo grau de parentesco entre os Rocha e os escravos que moldaram as telhas. As paredes foram engendradas por ele próprio, com pedras soltas retiradas da beira de um lago, circundado por amoreiras, cujos galhos, enlaçados, formavam um túnel sobre a passarela que atravessava o rio. Vivia-se, naqueles tempos, de cachaça, de feijão, de coisas da terra; e um bico ou outro em sítios vizinhos, pela enxada e pelo ferro.

Às seis horas da manhã, pouco antes de vir a falecer, o desdentado embocava o seu primeiro cigarro do dia. A mortalha estava úmida, porquanto o tabaco estava molhado e com gosto azedume. Naquela manhã, Azucrim amanhecera como se tivesse bebido barris de cachaça. Seu corpo estava amolecido e fraco. Sob as pestanas, via-se o arroxeado das olheiras modorrentas.

Já se anunciava o fim do dia quando tomou a trilha, que levava a outras terras, vizinhas, porém, também empossadas pelo patrão. Seguia ensimesmado, sem olhar ao derredor. Um gatilho fê-lo despertar. Ele olhou para trás e recebeu três tiros de carabina cravados no peito. Quando o enterraram, não notaram escoar sangue de nenhum dos orifícios. E ele foi sepultado com a mesma expressão que tinha ao ser alvejado. A pele estava vermelha, com certo rubor. Seus traços pareciam ainda regados a sangue; só a boca que enrugou, como se os lábios fossem engolidos, como se o rosto estivesse a se tragar.

Cinco dias antes do homicídio, Azucrim estava em M*** a fazer remendos. Dali quem cuidava era um caseiro, não muito velho, com uma mulher e um filho aleitado. Corre a suspeita de que o rebento era bastardo, mas de nada se sabe com certeza. O sujeito se chamava Altamiro. Trabalhava numa carvoaria avizinhada à sua mansarda.

***

Luzia Graça era o nome da mulher. Sua pele tinha cor morena. O cabelo era bem armado. O corpo era muito espartilhado. As ilhargas, sinuosas e curvas. O que tinha de mais belo era o passo suave e cheio de balanço. As pernas eram torneadas, de joelhos côncavos, arrematadas por dois pezinhos miúdos e descalços; apesar disso, sem um calo saliente.

Ela adorava se confessar. Confessava-se com o padre, com o padeiro; com os primos, com os vizinhos.  Casou-se por obrigação. Foi vítima das escapelas que dava atrás da igreja com o marido. Antes de completar dezesseis anos, seu filho completara um ano de idade.

Luzia chegou à cidade pouco antes de se casar. Chegara mirrada, macérrima; com um rosto infantil, porém de olhar lascivo de gata velha. Logo que conheceu Azucrim, viu-se tomada pelo mais humilde desprezo. “Desdentado”, pensou, mas, com o tempo, ficou intrigada pela sua indiferença, que se confundia facilmente com timidez.

“Não era um homem, era um bicho”, disse depois que vira Azucrim sangrando um porco a mando do patrão. “Parecia que estava até entediado, como se pudesse comer o bichinho assim mesmo, vivo”, arrematou numa das conversas com o marido.

O olhar do desdentado parecia atravessar a alma de Luzia, cada vez que a cumprimentava. Ela, meio sem jeito, fazia-se inocente, servia-lhe o café, toda vez em que o homem chegava para os remendos da casa.

Ela jamais sentira algo por ele. No dia do seu enterro, sequer uma lágrima ela chegou a derramar. “Parece que vou ao enterro de um bicho, mas o nó nas tripas passou”, comentaria mais tarde com um de seus extras confidentes.

A cinco dias da morte de Azucrim, ela acordou com o peito seco, com sede e com nós nas tripas; mas lhe veio uma vontade recôndita, inaudita e, de sua cabeça, não lhe saía a imagem daquele bicho indiferente, de olhar penetrante, que lhe atravessava a alma.

O marido fora trabalhar antes de a alvorada pespontar ao cimo do vale.  Ela ficou na cama até o dia raiar, depois, foi preparar o café. Às nove horas em ponto, Azucrim se assomou à porta.

Ficou a fitá-la com o ombro recostado no limiar de madeira. “Tem café?” Perguntou. Ela, sem olhá-lo disse que já estava para sair, era só esperar a água ferver. Ele adentrou ao cubículo, sentou-se em um caixote de feira, apoiou um dos braços sobre a mesa e ficou a girar a xícara em círculos. Quando ela virou, pareceu ter visto outro homem. Sentiu mais medo do que outra coisa, mas a vontade, antes entranhada, começava a dar sinais de descarga. Correu ao banheiro e desfez-se em merda.

***

Depois daquele dia, a mulher se internou dois dias no quarto, vexada. Azucrim passava todas as manhãs e se apoiava no umbral, aprumado na mesma posição de sempre, à espera do café, mas ela não apareceu. No terceiro dia, ela pôs a cabeça para fora do quarto com outra graça. Era meio dia, o desdentado ainda estava lá, com o braço apoiado sobre a mesa, à espera do café. “Não vai me servir uma xícara”, disse-lha. Ela saiu a fazer muxoxos espaventos com a mão ao alto, dizendo frases desconexas. Ao chegar perto da visita indesejada, a barriga começou a doer, de novo. E viu, mais uma vez, outro homem à espera do desjejum.

Dessa vez, Luzia não acorreu ao banheiro. “Uma força estranha me acorrentava a ele”, afiançou ao depor na delegacia o assassinato de Azucrim. Sentiu como se aqueles olhos rútilos e negros a fustigassem. Ele a tomou pelo braço e a beijou. Ela resistiu, mas logo se desabrochou ao colo do sinecura. Então, ela o levou para fora, onde seu filho não lhes pudesse assistir, e consumou mais uma de suas confissões apócrifas. A porta de entrada rebimbava aos solavancos. O rebento dormia no quarto. Luzia sentiu seus seios umedecerem. E a garganta sequiosa, se lavar em saliva. “A boca do matador de porcos tinha gosto de sândalo”, afirmou mais tarde.

***

No dia de sua morte, a 11 de outubro, Azucrim acordara assustado. À véspera do assassínio, ele dormira na rede, com um cigarro aceso entre os dedos, antes de a noite chegar. Raios oblíquos de fim de tarde lhe batiam na cara. Súbito, sentiu lhe tomarem a guimba das mãos. Uma voz lhe soou ao pé do ouvido: “você vai para o inferno, vagabundo”. Antes que abrisse os olhos, pegou o facão cintado na calça e se acorreu atrás do homem incógnito que lhe profetizara o disparate. “Cadê você, corno?” Eram seis da manhã. Não havia ninguém na casa. A porta estava fechada, e a janela, entreaberta. “Pro inferno com isso”, talhou, por fim.

Antes de sair de casa, ele tomou um gole de água ardente, sobraçou a garrafa nos sovacos e foi dar comida aos porcos. Tomou aquele enigmático acontecimento como mau augúrio. “Hoje eu só vou beber, para o inferno o trabalho”. Muito tempo depois, após ser solto da cadeia, Altamiro assumiria que o tinha esperado uma madrugada e um dia inteiro para matá-lo. “Mais um pouco, eu já ia desistir”, relatou. De fato, sua intenção nunca fora matá-lo. “Eu não tive culpa, não deu para controlar.”

Os mesmos vizinhos que lhe contaram da traição tentaram dissuadi-lo da ideia de corno facínora. “Só dá uma sova na mulher e basta”, uns disseram; outros emendaram: “a culpa não é dele, você bem sabe a mulher que tem em casa”.

***

Como foi constatado no laudo da perícia, não havia escoado pelos furos de bala uma gota de sangue, mas o defunto estava, além disso, todo retalhado. “Eu atirei, mas parecia que ele não queria morrer, então eu arrebentei o desdentado no facão.”, contou à esposa, em uma de suas raras folgas da carvoaria, numa tarde chuvosa.

Era já fim de tarde do dia 11 de outubro, coincidentemente, mesmo dia de sua morte, quando Azucrim seguiu pela trilha, onde fora morto a tiros e a facadas. Bebera               o dia inteiro sem comer sequer o que estava na panela, passados cinco dias.

Ficara balançando na rede até acabar a primeira garrafa de cachaça. Em verdade, ele já suspeitava que Altamiro quisesse matá-lo. Naquela manhã, além do sonho, outros sinais o atarantaram. Quando foi dar de comer aos porcos, outro empregado da fazenda, que chegara de viagem, alertara por alto, que havia um homem na Trilha da Curva – como a chamava a peonada – embuçado numa capa de romaria, com uma carabina na mão e uma garrafa de água ardente na outra.

Nada o faria sair de casa, senão a coragem que lhe deram duas garrafas de pinga. Ao levantar-se da rede no meio da tarde, findo o primeiro galão de bebida, Azucrim fora prosear com o vizinho que lhe alvitrou sobre o homem a atalaia na trilha. “Ele chegou sem parecer bêbado, mas quando eu lhe dei a última garrafa, vi que tinha feito mal”, asseverou.

Ao fim da garrafa, o homem já virara macho. “Quero só ver se consegue. Tenho peito de aço”, preconizava Azucrim ao parceiro de labuta. “Mais um gole, e eu vou lá”. O companheiro do desdentado não deu muito crédito ao amigo. Ele imaginava que a sentinela estava a caçar veados, prática comum naquela época do ano em S***.

Encerrada a garrafa, o homem saiu trôpego rumo à trilha. Antes parou no chiqueiro, pegou um porco e o sangrou, deu-lhe ao amigo: “caso eu não volte, põe na conta do patrão”. Foi um verdadeiro sacrifício chegar ao portão da fazenda. “Eu achei que ele não ia conseguir abrir a porteira”, lamentou o amigo com a esposa, anos mais tarde.

Quando chegou ao pé da mata, antes fez uma varredura minuciosa ao redor. Apesar de ter analisado o espaço em seus pormenores, ele não vira Altamiro plantado a menos de três metros de distância dele. “Cheguei ainda a pisar num galho morto, achei que ele tivesse me visto”, contou quando já enclausurado na cadeia.

Azucrim embrenhou-se na mata, passou ao lado de seu algoz, sem aperceber-se do fim, e prosseguiu mais alguns passos.

Às costas, ele ouviu a arma ser engatilhada, foi como se lhe custasse naqueles poucos segundos uma eternidade. Azucrim fitou os olhos de seu carrasco e falou: “vamos, não perca a sua fé, acerta”, Altamiro ainda vacilou por um tempo. A mão tremeu, e o desdentado, de cara amarrada, talhou: “vai, corno, atira pra matar”…  Antes que terminasse a frase, sentiu a primeira bala lhe assestar o peito. O homem foi a se aproximar do atirador. “Morre, verme”, gritou Altamiro, ao desferir a segunda cravejada de chumbo à vítima.

Azucrim, de braços abertos, com o peitoral à mostra, continuou a ir de encontro ao corno. Seus olhos se tisnavam à medida que se esforçava para alcançar o marido daquela menina triste, que vivia a se confessar na cama do primeiro homem a lhe servir de prelado.

Soou o terceiro disparo. O Rocha permanecia intermitente e convicto.

Altamiro puxou da bainha o facão e acorreu ao adúltero. Pregou-lhe a primeira ceifada à altura do sincipúcio, na omoplata; um de seus braços despencou, desfazendo a forma em cruz em que insistia em peregrinar. O segundo golpe lhe varou a pélvis, provocando hemorragias no duodeno, pâncreas e fígado. Uma espuma esverdeada e amarelenta subiu à ferida. Mais uma facada cortou o dedo da outra mão, que ainda permanecia em sua posição original. Mas o corte certeiro foi ao ventre. Tripas e um cheiro de fedentina saíram da região seccionada. Azucrim esforçava-se a valer para segurar o intestino e a gosma supurada a despontar barriga afora. “Ele ainda insistiu em dar mais três passos para frente, mas, finalmente, caiu”, estacou Altamiro em um dos últimos inquéritos prestados à polícia.

***

Luzia da Graça já velha nunca deixou de se questionar o motivo da morte de Azucrim. E nunca mais fez suas visitas aos amantes que tinha espargidos pela cidade. O marido foi preso. “O meu marido não seria homem se não tivesse matado esse homem”, disse certa vez a um dos antigos amantes. A seis de junho, de uns quatro anos subsequentes à tragédia, Altamiro saiu da cadeia. Em seu primeiro encontro com a mulher, interpelou-a: “por que você resolveu me pôr galhos logo com aquele diabo”. Ela lhe respondeu apenas: “o ódio, às vezes, se confunde com coisas inexplicáveis”. Ele nunca mais trabalhou na carvoaria. Vivia deitado na rede – o que faz aí, seu Altamiro, não vai trabalhar, não? – estou esperando o enterro daquele diabo passar.

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