VIDAS NEGRAS IMPORTAM, por Roberto Livianu

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Faltavam poucas horas para a data da celebração anual da Consciência Negra, quando João Alberto Silva Freitas, autônomo, negro, foi assassinado de forma selvagem nas dependências do supermercado Carrefour, em Porto Alegre.

Ele tinha ido fazer compras com a mulher naquele mercado que frequentava onde, possivelmente, acumulava alguma animosidade anterior com os seguranças. Foi conduzido de forma constrangedora para a entrada da loja, onde, em inferioridade numérica, foi imobilizado, espancado e asfixiado pela ação do joelho de um homem até morrer.

Asfixia –mesmo método usado para matar, 6 meses antes, o negro George Floyd, em Minneapolis, nos Estados Unidos, fato que gerou imediata reação e revolta, que se espalhou pelo país inteiro, apesar das restrições de aglomeração impostas pela quarentena da covid-19.

No caso de João Alberto, o Beto, mais alguns elementos chamam a atenção. A postura da fiscal do supermercado, em volta da cena, que adverte o indivíduo que está filmando os fatos, dizendo que o “queimaria na loja” caso prosseguisse, demonstrando querer a impunidade da agressão. Ela se autolesiona, cortando o próprio dedo e afirma falsamente ter sido Beto o agressor, visando a contribuir já com uma versão falsa de suposta legítima defesa.

A intensidade do ataque a Beto é brutal e revoltante, pela falta de qualquer justificativa plausível, além do fato de ter a pele negra. Ficou uma amarga sensação no ar de que se a pessoa em questão que foi morta por molestar clientes ou “criar caso” anteriormente fosse branca não teria aquele destino.

As diversas reportagens feitas pela mídia revelaram acontecimentos anteriores cometidos pelo corpo de seguranças da mesma empresa Carrefour contra clientes, via de regra negros, em circunstâncias equivalentes, não se tratando o caso de Beto episódio isolado individual.

O fato comoveu o país e tivemos reações de pessoas e manifestações de repúdio, o que ao menos evidencia que não perdemos nossa capacidade social de indignação. Mas, é chocante a falta de qualquer espécie de manifestação de solidariedade à família e aos amigos por parte do presidente da República, mandatário maior da nação.

Chocante também foi a declaração do vice-presidente, o general Hamilton Mourão, ao afirmar que não há racismo no Brasil, optando pelo conforto inadmissível do negacionismo, mesmo diante da certeza visual do crime, gravado em vídeo e de nossa realidade socioeconômica e política.

Todos nós sabemos que, apesar de evoluções em curso, indivíduos ainda são abordados pela polícia muitas vezes apenas por terem a pele negra. Que negros desenvolvem exatamente o mesmo trabalho que brancos em uma empresa, pela mesma quantidade de horas e recebem 30%, 35% ou 40% a menos a título de remuneração.

Sou do Ministério Público de São Paulo e temos pouquíssimos negros na instituição. Na magistratura, idem. Na política, nestas últimas eleições, houve uma ligeiríssima melhora, mas pouco significativa, porque não prevalecem regras objetivas de governança e de compliance para distribuir recursos do Fundo Eleitoral e sim, a vontade do cacique dono do partido político.

Quando Luiza Trajano quis, de forma louvável e corajosa, minimizar este fosso social, foi crucificada injustamente por recrutar trainees obrigatoriamente negros para a Magalu num país que foi o último a abolir a escravidão no mundo ocidental democrático. No qual os donos de escravos, logo depois da Lei Áurea foram à Justiça pedir indenizações pelas expropriações de suas propriedades, ao passo que a vizinha Colômbia já possuía naquele ano uma Lei de Acesso à Informação Pública.

Nosso racismo infelizmente é estrutural ainda. Não se transmite da forma como deveria o sentido de igualdade de todos os seres humanos. Não se educa como deveria. Muitas empresas retroalimentam a engrenagem racista, deixando de orientar seus corpos de segurança para o respeito à dignidade humana.

Pedir perdão e reconhecer a responsabilidade como fez o Carrefour é um começo, mas insuficiente. É necessário agir de forma muito mais profunda e efetiva para mudar esta cultura corporativa e demonstrar que acredita de fato que vidas negras importam exatamente o mesmo que vidas brancas!

Roberto Livianu, 52, é procurador de Justiça, atuando na área criminal, e doutor em direito pela USP. Idealizou e preside o Instituto Não Aceito Corrupção. Integra a bancada do Linha Direta com a Justiça, da Rádio Bandeirantes, é articulista da Folha de S. Paulo e do Estado de S.Paulo e é colunista da Rádio Justiça, do STF.

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